sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Trechos de Uma Mente Própria, de David M. Friedman

Desde o começo da civilização ocidental, o pênis foi mais do que uma parte do corpo. Foi uma idéia, uma medida-padrão conceitual, ainda que real, do lugar do homem no mundo. Os homens terem um pênis é um fato científico; como pensam a seu respeito, se sentem em relação a ele e o usam, não é. Idéias acerca do pênis variam de cultura para cultura e de época para época. É possível identificar os momentos principais da história ocidental em que uma nova idéia de pênis tratou do mistério maior da sua relação com o homem e mudou para sempre a maneira como esse órgão era concebido e usado.

Uma evidência das mais antigas dessas idéias foi encontrada nas ruínas da cidade suméria de Eridu, no sul do atual Iraque, onde arqueólogos desenterraram pequenas tábuas cuneiformes com mais de cinco mil anos. Nessa civilização antiga, o pênis tanto simbolizava a natureza irracional quanto a inteligência divina. Era um mistério, contendo o deus incognoscível, e essa idéia era expressa nas crenças religiosas. Grande parte da literatura encontrada em Eridu, composta na primeira língua escrita do mundo, celebra as proezas do deus Enki. Retratado tipicamente como um homem grande e de barba, com um barrete com vários chifres, Enki era o grande benfeitor da humanidade, o “Determinador dos Destinos” e o “Organizador do Universo”, que, no épico de Gilgamesh, ajuda a salvar o homem do dilúvio enviado por outros deuses. Como a Suméria era (e o Iraque continua sendo) uma região árida entre os rios Tigre e Eufrates, duas vias navegáveis propensas a alagar, a água era uma substância preciosa e, às vezes, perigosa, nesse “berço da civilização”. Sem a irrigação provida por esses rios, a sobrevivência era impossível. Quem quer que desse vida a esses rios incorporava a própria idéia de vida. A poesia do terceiro milênio a.C. identifica essa força criativa como sendo Enki — mais precisamente, o pênis de Enki.


Depois que o Pai Enki ergueu os olhos ao Eufrates,

Levantou-se cheio de luxúria como um touro ao atacar.

Ergueu o pênis, ejaculou,

Encheu o Eufrates de água corrente.


Seis versos depois, Enki faz o mesmo para o Tigre:


Ele ergueu o pênis, levou os presentes de núpcias,

Como um grande touro selvagem, excitou o coração do Tigre,

[E assistiu] ao seu parto.


Em outros poemas, Enki usa seu pênis para cavar as primeiras valas de irrigação do mundo, inventa a reprodução sexual, e é pai do primeiro bebê humano, depois do que exulta: “Que agora o meu pênis seja louvado!”

Essa idéia extática do pênis como gerador da vida era partilhada pelos egípcios, cujos deuses realizavam bravatas semelhantes. Em hieróglifos escritos quatro mil anos atrás no interior das pirâmides, uma divindade egípcia e seu pênis fornecem uma alternativa intrigante à teoria atual da origem do universo pelo Big Bang. “Eu criei sozinho todos os seres”, diz o deus Atum. “O meu punho tornou-se a minha esposa. Copulei com a minha mão.” O pênis de Atum cria toda a vida, divina e mortal, através do ato sagrado da masturbação, começando com o deus do ar e a deusa da umidade, que emerge inteira de seu sêmen. Esses deuses se unem e geram Geb, deus da Terra, e Nut, deusa do céu. A cópula desse casal divino é representada em vários papiros. Os desenhos mostram Nut nua curvada sobre o deus Terra, que está deitado, seu pênis ereto apontando para o céu. Para os egípcios, isso não era pornografia: era o mapa religioso de seu universo.

Uma vez por ano, o faraó, o rei egípcio, prestava homenagem a outro deus perpetuamente ereto — Min, deus da procriação. “Salve, Min, que fez sua mãe dar à luz!”, dizia o faraó em uma oração assinalando a crença de que esse deus era tão potente que foi pai de si mesmo. Depois de o faraó louvar Min em seu templo tebano para lhe garantir filhos, a estátua do deus era colocada sobre uma plataforma carregada por sacerdotes com as cabeças raspadas e vestidos de linho branco. Min sempre era esculpido em uma posição em que seu imenso pênis ficasse mais visível. Em uma procissão solene, atrás da estátua, seguia o faraó e sua rainha, acompanhados por um touro branco, animal considerado Min encarnado, e outros sacerdotes carregando alface, uma planta cuja seiva branca, símbolo do sêmen de Min, era considerada sagrada.

A santidade do pênis era a idéia central do mito mais importante do Egito, uma história que estabelecia a crença egípcia na vida além da morte e na linhagem divina do faraó. Trata-se do mito de Osíris e Ísis, irmãos que governaram como rei e rainha do Egito na primeira idade do mundo. Osíris legou uma coleção de leis e ensinou seu povo a cultivar cereais. Ísis identificou as propriedades medicinais das ervas e inventou a tecelagem. Eram amados por seus súditos, mas odiados pelo irmão ciumento, Seth, que induziu Osíris a deitar-se dentro de uma arca, que seus comparsas lançaram no Nilo. Ísis encontrou o corpo de Osíris, mas Seth o recapturou e o partiu em 14 pedaços, espalhando-os pelo reino. Depois de muito procurar, Ísis achou todos, menos o pênis do rei.

Em uma das versões do mito, a rainha juntou o que encontrou formando a primeira múmia. Em seguida, transformou-se em falcão e pairou sobre a entreperna de seu companheiro morto, usando o bater das asas para produzir um novo pênis. Ísis abaixou-se nesse órgão, magicamente reconstituído, e recebeu a semente de Osíris. O filho dessa união foi Horus, de quem todos os faraós alegavam descender. Para se vingar da morte de seu pai, Horus acabou matando e castrando o assassino, Seth. Segundo Plutarco, o grego que visitou o Egito quase na virada do século primeiro, uma estátua em Koptos mostrava Horus com o seu troféu — o pênis de Seth — na mão. Mais tarde, outra história da ressurreição foi preconizada perto da Judéia, depois por toda a bacia do Mediterrâneo, sobre um homem nascido de Deus e de uma virgem, que levava uma vida de castidade e que oferecia um caminho direto à salvação pessoal a quem acreditasse que o Filho de Deus havia se levantado dos mortos. No Egito, um mito sagrado preconizava a salvação de uma cultura inteira através da morte e renascimento do pênis de um deus.

Esse órgão mágico, tão potente que derrotava a morte, dominava o Além-mundo egípcio. O remembrado Osíris ostentava a sua virilidade no outro mundo, onde governava como rei: “Eu sou Osíris... o pênis teso... Sou mais poderoso do que o Senhor do Terror; copulo e tenho poder sobre miríades”, diz ele no Livro dos mortos egípcio. Em contraste, um sortilégio contra uma serpente no Livro diz: “Não ficará ereto. Não copulará.” A ligação entre impotência e derrota teve conseqüências implacáveis, na vida real, para os inimigos do Egito no campo de batalha. A prova foi inscrita nos muros de Karnak, cerca de 1200 a.C., pelo faraó Merneptah, após o triunfo sobre os líbios:


Pênis de generais líbios: 6

Pênis decepados de líbios: 6.359

Sicilianos mortos, pênis decepados: 222

Etruscos mortos, pênis decepados: 542

Gregos mortos, pênis oferecidos ao rei: 6.111


Três mil anos depois, um presidente norte-americano mostraria como essa associação ainda seria poderosa na mente de um líder. Robert Dallek escreve em Flawed Giant: Lyndon Johnson and His Times, 1961-1973 sobre um encontro, não-oficial e inesquecível, entre o presidente Johnson e repórteres céticos pressionando-o a explicar por que os Estados Unidos estavam ainda combatendo no Vietnã. Frustrado com o seu raciocínio político não-convincente, o presidente abriu a braguilha, puxou seu pênis para fora e disse: “Isto é o porquê!”

Um alto-relevo mais antigo do que o do faraó Merneptah revela que os egípcios submetiam seus pênis à faca. A escultura encontrada em 1889 na necrópole de Saqqara, na margem ocidental do Nilo, do outro lado do antigo sítio de Memphis, mostra um homem ajoelhado em frente a um menino. As mãos da criança estão seguras pelo assistente que está atrás dela. O homem que fará a circuncisão segura o pênis do menino com a mão esquerda, o prepúcio distendido. Em sua mão direita, vemos uma pequena faca.


“Segure-o, que ele não desmaie”, diz o homem, em hieróglifos. “Faça o melhor possível”, diz o assistente.


Essa concisa troca de palavras, datada de cerca de 2400 a.C., demonstra que a circuncisão tem uma longa história no Egito. Heródoto, o grego “Pai da História”, que visitou o Egito por volta de 450 a.C., achava que os seus anfitriões tinham inventado o rito. No começo do século XX, o antropólogo Grafton Elliot Smith concordou, escrevendo que a circuncisão fazia parte de um culto de adoração ao sol que teve início no vale do Nilo 15 mil anos atrás e foi, então, copiado por povos vizinhos. O Livro de Jeremias, do Velho Testamento, menciona que edomitas, moabitas e amonitas — vizinhos dos egípcios e dos israelitas igualmente — praticavam a circuncisão. Não se sabe se a aprenderam com os egípcios. Alguns dos colegas de Smith argumentaram que, em vez de nascer no Egito, o rito começou como uma marca quase universal da escravidão ou da desonra dos prisioneiros militares. Talvez a única coisa não contestada seja a aversão de Heródoto a tal prática, posição compartilhada por todos os gregos. “Outros povos deixam suas genitálias como eram ao nascer”, escreveu Heródoto. Os egípcios dizem que “preferem ser limpos [em vez] da falsa aparência”.

Grande parte da meticulosidade dos egípcios concentrava-se nas aberturas do corpo. Um curandeiro cujo nome sobreviveu desde os tempos faraônicos foi Iri, o Conservador do Reto Real, que trabalhava como especialista na irrigação do cólon do faraó. Os egípcios eram extremamente preocupados com o livre fluxo das excreções naturais e talvez tenham começado a remover o prepúcio porque, em seu clima quente, freqüentemente acumulava esmegma, matéria sebácea que poderia, potencialmente, impedir o fluxo da urina e do sêmen. Mas também é possível que a circuncisão egípcia tivesse menos relação com a limpeza do que com a devoção. Embora o rito existisse em todas as classes sociais, era exigido somente dos sacerdotes do templo, como sinal de afiliação ao deus-sol Rá, que circuncidou a si mesmo em um ato descrito no Livro dos mortos. Isso criou um dilema inesperado para o filósofo grego Pitágoras quando este viajou ao Egito, por volta de 550 a.C. Ao visitar um templo egípcio, Pitágoras pediu para ver os livros sagrados ali guardados. O sumo sacerdote concordou, mas com uma condição: antes o grego deveria se circuncidar.

Para os hebreus, a circuncisão e a relação que estabelecia entre o homem, seu pênis e Deus eram um sinal de afiliação com o Todo-poderoso — e consigo próprio. Era exigida não somente dos sacerdotes, mas de todo israelita homem no oitavo dia de vida. As origens teológicas são explicadas detalhadamente no Gênesis, onde Deus faz um acordo com Abraão (nascido Abrão), então com 99 anos, e sua “semente”. Essa aliança estabelece o Todo-poderoso como única divindade dos hebreus, aos quais é prometida uma terra natal em Canaã, onde seriam “excessivamente férteis”, até mesmo Abraão, a quem foi dito que seria pai mais uma vez. O antigo habitante do deserto só podia rir desse prospecto. “Uma criança nascerá”, pergunta ele, “de um homem com cem anos?” Isso não é problema para Deus, evidentemente, mas, em troca, Ele exige um sinal: “Todos os homens entre vocês devem ser circuncidados. Devem ter o prepúcio cortado, e esse será o sinal do pacto entre mim e vocês.” A Torá relata que Abraão cortou rapidamente o seu prepúcio e de todo filho que nasceu em sua casa, e de todos que foram “comprados com [seu] dinheiro”. (Foi omitida a reação dos homens e garotos quando esse pastor de cabras enrugado emergiu de sua tenda com uma pedra ensangüentada na mão e declarou alto que Deus tinha acabado de ordenar-lhe fazer isso.)

Essa estranha ordem e o pacto monoteísta que selava tiveram um impacto duradouro e controverso. Abraão, que era o pai de Ismael (fundador da nação árabe), assim como o patriarca judeu Isaac, é reverenciado pelo Alcorão como “um guia do povo”. Abraão circuncidou Ismael — conseqüentemente, os muçulmanos também circuncidaram seus homens. (Várias tribos na África, assim como os aborígines australianos, praticam a circuncisão sem nenhuma associação com o Velho Testamento.) A circuncisão judaica, espiritualizando o propósito procriador do pênis, redefiniu a relação entre o homem e o seu órgão definidor. Em troca de ter-se tornado o pai do povo eleito por Deus e de uma bênção da fertilidade que garantiu a existência eterna dos israelitas, Abraão concordou em não adorar nenhuma outra divindade e em cortar seu prepúcio. Esse ato alterou simbolicamente seu pênis, expondo permanentemente a sua glande — como acontece quando um pênis não-circuncidado está ereto —, uma mudança superficial que não tem nenhum efeito sobre o funcionamento reprodutor do órgão. Alguns argumentaram que, imitando a ereção dessa maneira, a circuncisão revela que os hebreus foram dos primeiros a cultuarem o falo. (Esta não é uma visão amplamente aceita.) Outros observam que Maimônides, o pensador judeu mais influente da Idade Média, declarou que o verdadeiro propósito do ato seria “reduzir o intercurso sexual” e “enfraquecer o órgão em questão”, de modo que os judeus servissem a Deus antes de à sua própria luxúria. (Ativistas modernos contra a circuncisão argumentam de maneira semelhante, com base secular: a operação, dizem eles, remove grande parte dos receptores sensitivos do pênis.) Entretanto, a condição de que o pênis de Abraão não “enfraquecesse” era, claramente, uma parte essencial do pacto. Sabemos que vigor não foi problema para Abraão depois de sua autocircuncisão, mesmo após celebrar seu centésimo aniversário. Não somente Sara deu à luz Isaac, conforme prometido, como, depois de sua morte, Abraão tomou uma companheira muito mais jovem, Keturah, e gerou outra família.

Claramente, a circuncisão “funcionou” para Abraão. Mas o fascínio que durante tanto tempo exerce sobre estudiosos da religião, historiadores, antropólogos, anti-semitas, especialistas em saúde pública e, até mesmo, o desvelo com que os cruzados anticircuncisão contemporâneos agora a atacam revelam que a circuncisão “funciona” também em vários outros níveis. Alguns poucos rituais se comparam a esse em complexidades psicológicas contraditórias — algo físico, ainda que não fisiológico; sexual sem ser erótico; não-genético, mas genealógico; uma marca, mas não marca de nascimento, realizada no lugar exato que distingue o homem da mulher. Esse ato tendencioso em relação ao gênero divino faz sentido até mesmo para uma feminista importante. “O que seria mais lógico e apropriado”, pergunta Gerda Lerner em The Creation of Patriarchy, “do que usar como principal símbolo da aliança o órgão que produz a semente e que a planta no útero feminino? [...] O oferecimento de nenhuma outra parte do corpo teria enviado, ao homem, uma mensagem tão vívida da conexão entre a sua capacidade reprodutora e a graça de Deus.”

Algumas passagens do Velho Testamento, entretanto, tratam a circuncisão como uma metáfora para a condição sagrada de toda parte do corpo, enquanto o Deuteronômio convoca todos os filhos de Israel para “circuncidar [o seu] coração”. Mas não há dúvida quanto ao local autêntico do significado da circuncisão. A ligação entre o homem e o mistério mais impressionante do universo — Deus — foi selada marcando o órgão com que o homem mantém a sua relação mais reverente e misteriosa: o pênis.

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